Não vale a pena entender meu passado que antecede meus “promissores” dezesseis anos, que foi quando conheci a pessoa que destruiu todos os muros e barreiras por mim construídos. Cabelos e olhos castanhos, não muito alta e nem muito magra... Não chamava a atenção dos outros garotos, apenas a minha. Meu único oponente era eu mesmo e meu orgulho inabalável, ou quase inabalável. Grande palerma que eu era, sim.
Não vou mentir e dizer que foi amor à primeira vista, porque quando conheci Hoo nunca pensei que me apaixonaria por ela, de modo que nunca fiz real esforço para que ela se apaixonasse por mim. Considerava-a apenas minha grande amiga, claro que com a liberdade de poder beijar-lhe os lábios. Foram poucos beijos antes de serem reais e nem mesmo a intensidade foi igual depois de mostrarmos nosso verdadeiro interesse um pelo outro.
Naquela época eu me drogava, mas não o suficiente para não conseguir pensar e julgar a humanidade como medíocre e hipócrita. Gastava minha mesada comprando meu baseado uma vez por mês e já não necessitava de mais um pouco. Tenho orgulho de poder dizer que não era nenhum junkie descontrolado e poderia parar quando bem quisesse.
Percebi o quanto amava Hope quando ela me ligou dizendo que estava namorando um tal de Giordano. Eu estava meio chapado na hora e acabei por lhe desejar um parabéns seco e irônico antes de desligar na sua cara. Lembro-me de ter destruído meu quarto naquele dia, quebrando luminárias, chutando minha cama, rasgando e jogando papéis pelos ares... E depois de quebrar tudo o que tinha direito, passei a socar a parede com toda a força que me restara e só consegui parar quando meu punho começara a sangrar, nisso eu caí de joelhos no chão e passei a chorar em uma mistura de tristeza e ódio.
No dia seguinte acordei com uma dor de cabeça dos infernos, atrasado para a aula e em um humor totalmente blasé. Eu estava insuportavelmente desinteresse em qualquer outra coisa que não fosse meu café. Antes que comece a se perguntar, esse meu vício começara aos quatorze anos de idade, e o mesmo só acabou no dia 13 de março de 2009, em meus vinte e nove anos. Retrocedendo a minha dissertação, cheguei atrasado para a segunda aula e só pude entrar em sala no terceiro horário.
- Olá, Sr. Hedberg, pode entrar e se sentar. – Era o professor de Sociologia, Hensel Stoll. Não é o melhor nome do mundo, de fato, e o homem certamente gostaria de dar sua aula sem minha “agradabilíssima” presença, mas era a única aula que eu gostava de participar, já que sabia como deixar o professor calado sem levar advertências com a desculpa de que é apenas a minha opinião.
- Eu não pedi licença para que o senhor pudesse me concedê-la. – Retruquei, presunçoso. Se não entendera antes, agora sabe o porquê de meu ex-professor me repugnar tanto.
- Oras, não vou comprar briga com o senhor! – Era engraçado vê-lo se irritando – e nada raro -, suas bochechas e testa ficavam gradativamente vermelhas, seus olhos castanhos estreitavam-se, seus dentes cerravam e sua mão passeava inquieta e inconstante pela careca oleosa.
- E eu não estou vendendo... – Meu tom de voz saíra parecido com uma justificativa irônica. Então levei meus cadernos e sarcasmo até a única mesa vazia da sala, que ficava atrás justamente da carteira de Hope. Animada, como sempre, virou-se para falar comigo.
- Parece que hoje terá a festa de Jake, você vai precisar de carona? Porque Gio vai passar lá em casa e podemos levá-lo também! – Dizia, sorrindo o sorriso mais gracioso e perfeito que eu já vira, mas eu tinha que ser um babaca.
- Ah! Claro! Aí eu vou dirigindo para que você e “Gio” se agarrem no banco de trás! – Eu falei, com uma falsa empolgação, jogando todo o veneno que eu tinha. A expressão de Hope foi de devastação naquele momento.
- Eu esperava mais de meu melhor amigo. – Típico. Melhor amigo não era exatamente como eu gostaria que ela me descrevesse.
- Oh! Está querendo meus sentimentos? Desculpe-me, mas deixei no bolso da outra calça... – Sarcasmo pesado o por mim utilizado, mas ela tinha que entender o quão indiferente eu me sentia com relação a ela, mesmo que fosse uma mentira.
Sabe qual era o fato mais irritante daquela situação? Giordano era o tipo de atleta famosão da escola, playboy mesmo. Era o tipo de estereótipo que eu mais repugnava! Havia a certeza de que ele não era o cara certo para ela, só que essa certeza não era percebida pela vítima em questão, Hoo.
Eu o odiava, parecia que todas as vezes que eu encarava o “casal” eles estavam se acariciando ou, pior, se agarrando. Já não agüentava mais ter que aturar aquilo e jogar constantes indiretas para a garota que eu amava já não era tão divertido. Então passei de um implicante mal-humorado para um blasé máster de vez, o que não fez de mim pronto para futuras conversas constrangedoras.
- Greg, você gosta de mim? – Estávamos voltando para casa, a pé e sozinhos, como sempre. A volta para casa era o único momento do dia que eu esperava com fervor, já que era o único momento do dia em que eu tinha um tempo a sós com Hope.
- Não, é que sou masoquista e falar com você é a maior tortura que existe. – Qualquer outra pessoa reviveria os olhos e embirraria comigo, mas a garota baixinha ao meu lado já sabia meu jeito de ser.
- Não, não... Quero saber se... Se me ama. – Meu ponto fraco. O que dizer? “Não, nem amo”? Já mentira muitas outras vezes, porém aquilo era diferente. Não era algo que eu pudesse mentir, então eu apenas daria outra possibilidade. Eu sabia que ela me perguntara aquilo não por acaso, mas por eu ter me intrometido em seu namoro.
- Já pensou que talvez eu faça isso apenas por ser um cretino que gosta de acabar com a felicidade alheia? – Lancei um sorriso de lado e ela parou fitando-me com curiosidade enquanto eu continuava a andar, deixando-a para trás. Não a vi mais aquela semana, provavelmente por ter faltado os outros dias com intoxicação alimentar. Malditos camarões.
Foi na sexta-feira, depois de vomitar todo o meu almoço, que recebi a carta que mudaria todo o meu comportamento para com Hope, ou talvez parte dele. Eram belas e sinceras as palavras e eu lia tudo com a perplexidade ao qual eu fora submetido. Novamente eu chorei pela garota que não me oferecia mais que sua amizade.
Sábado eu levantei cedo após rolar na cama a noite inteira, algo que já era rotineiro para mim. Tomei um banho, deixando as gotas de água atingirem com força minhas costas, todas me repreendendo e julgando com severidade. Meus pensamentos eram de auto-flagelamento e questionamento, minha mente trabalhava ignorando qualquer sentimento ou emoção, tentando escutar a voz da razão como sempre aconteceu.
Saí do banho e encarei o espelho, percebendo em mim mesmo cada detalhe insignificante, a barba mal-feita, espinhas na testa, um cacho rebelde, uma pinta no pescoço... Eu era uma pessoa tão tosca, no sentido mais literal da palavra, tão imperfeito... Claro que me surpreendia ao ouvir risadinhas femininas quando passava, ou ao notar como as camisinhas de minha carteira acabavam com tanta velocidade. Quando foi mesmo que o padrão de beleza mudou que não me avisaram?
Vesti-me como sempre, já que momentos eram momentos e não existiam exceções para os especiais. Uma camisa social, jeans e meu inseparável par da converse all star, cano médio, preto, surrado. Sabia que encontraria com Hope ao lado de Giordano, mas não achei que o clima entre eles estaria tão tenso.
- Quer dizer que sou o cretino da sua vida? – Claro que fiz de propósito, só para piorar a situação em que os dois pareciam se encontrar. O olhar de desaprovação de Hope apenas me incentivara, principalmente quando combinado com a aparente indignação de seu companheiro. Eu apenas sorri em sinal de diversão – Ora vamos! O que há com os dois? – Eu sabia que não era algo “com” os dois e sim “entre” os dois. E esse “algo” chamava-se Gregory Henry Hedberg, e faria qualquer coisa para acabar com o namoro deles. – Inclusive, esse seu decote me seduziu demais, Hoo. – Foi algo realmente rápido o soco desferido contra meu nariz. Talvez eu tenha parecido meio maníaco rindo enquanto saía sangue de minhas narinas, mas não consegui me segurar. – Ela só está com você para fazer ciúmes em mim, sua anta! – Minhas palavras eram cruéis e eu gostava daquilo.
- Isso é verdade, Hoho? – Quase vomitava ao ouvir esse apelido ridículo. Parecia uma imitação mal-feita do Papai Noel! – Você realmente queria fazer ciúmes nesse nerd anti-social? – Levei aquilo como um elogio e observei a cabeça baixa de Hope balançar positivamente, parecendo totalmente constrangida. – Então... Esqueça-me! – Ele dizia como se fosse algo difícil e deprimente. Giordano saiu e ficamos apenas eu, Hoo e suas lágrimas.
- Acho que podemos nos resolver agora, não é? – Perguntei encarando-a com um sorriso, mesmo tendo meu nariz sangrando terrivelmente.
- Você é desprezível! – Ela disse, virando-se para a rua e caminhando amargamente. Levava com ela meu orgulho e determinação, eu tinha que impedi-la.
- Diga-me algo que não sei! – Gritei em resposta, que parara de súbito. Nunca percebi de fato a força de minhas palavras até aquele momento, e nunca percebi como essa força podia esvair-se com tanta facilidade. O olhar de Hope tirara minha respiração, suas pernas tomando velocidade ao meu encontro acelerara perigosamente meu coração, mas apenas seus lábios aos meus em um beijo sincero conseguira fazer o que nenhum outro gesto de nenhuma outra pessoa conseguira anteriormente: parar por completo meu raciocínio.
- Eu te amo, mesmo que seja esse babaca inútil que você certamente é. Como está na carta: “Você é o cretino da minha vida.” – Isso sim era uma novidade e tanto.
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Desde aquele sábado inesquecível eu namorava Hope da forma que achava correta, ou seja, com reciprocidade. Éramos felizes de certa maneira, mesmo que a palavra “feliz” não seja muito adequada para me descrever.
Eu encarava meu reflexo no espelho mais uma vez, reparando em cada mísero detalhe, como em meus dezesseis anos. Mas eu já não era aquele adolescente com espinhas no rosto e dúvidas na cabeça, já havia me tornado um adulto cheio de preocupações. Eu me reprovava arduamente por ter sucumbido ao consumismo e capitalismo, por não ter realizado aquele sonho adolescente de viver de música, mesmo que em condições precárias.
A barba mal-feita dera lugar à falta de desleixo, as espinhas foram substituídas por uma pele madura, o cacho rebelde já não existia, esquecido entre os pouquíssimos fios brancos que eu já conseguia encontrar entre a cabeleira negra. Apenas a personalidade fora salva de uma mudança drástica... O mesmo cretino sarcástico e sádico, o mesmo vício no sabor do café e a mesma lógica e opinião sobre o mundo.
- Bom dia, meu amor... – O tom sorridente e colorido de Hope já não me animava como antes, apenas aquecia fervorosamente meu interior. Os anos que se passaram não foram nada cruéis com a aparência da mesma... Continuava linda, mesmo que tenha tido algumas mudanças significativas. Os braços de minha adorada envolveram-me e eu lhe dera um sorriso pelo espelho em resposta. Seus lábios tocaram meu ombro despido antes que eu pudesse observá-la adentrando o chuveiro. O estresse que envolvia aqueles meus vinte e sete anos e o tédio daquela rotina ridícula consumiam meu espírito.
- Vai sair hoje? – Eu perguntei encarando a pia suja de pasta de dente. Minha vida era tão medíocre que chegava a me enojar, tendo em vista que eu ainda não queria fazer parte daquela sociedade que se achava tão superior, mas não passava de pura hipocrisia.
- Ah! Acho que vou... Tenho que reabastecer a geladeira. – Morávamos juntos desde dois mil e cinco, tínhamos nossos sagrados vinte e cinco anos, a idade em que descobríamos uma nova vida conjunta. Ela se mudou para meu apartamento logo após eu convencê-la que casamento era algo ridículo e totalmente desnecessário. Até hoje penso que não a convenci de fato.
Alguns minutos depois eu estava trancando a porta para a mulher que roubara o lugar de minha pequena e frágil menina. Sua mudança não era apenas física, como ocorreu comigo. Diferente desse que vos escreve, ela havia se adaptado e conformado com a vidinha que levávamos, trabalhando meio período e passando o resto do dia jogando Magic entre beijos e lençóis. Mas algo mais havia mudado em seu comportamento, pelo menos naquela última semana eu sentia ter deixado algo escorregar por entre meus dedos, e por mais que eu apertasse as mãos fechadas, a informação escapava por elas sem qualquer cerimônia. O que meu belo Waterloo estaria escondendo de mim? Não foi nada agradável descobrir...
- Greg! Voltei! – Sua voz ecoava pelos aposentos até meus ouvidos, sendo que eu não estava tão longe da postar. – Oh! Aí está você! Como foi passar a manhã de... Ei! O que é isso que está segurando?! – Sua voz afinara terrivelmente, denunciando seu nervosismo. Ela tomara de minhas mãos o exame de gravidez de resultado positivo.
- Aborto. – Minha única declaração sobre aquilo. Eu não saberia cuidar de uma coisa rosa que só sabe chorar, urinar, defecar, comer e dormir. Paternidade nunca fora exatamente meu estilo e isso não mudaria porque Hope queria brincar de casinha. O que mais me deixara puto foi o fato de que ela havia planejado aquilo, sem mim. Eu não admitiria tal insulto.
- Não quero matar meu bebê! – A insatisfação que ela exalava era tão grande que quase me era palpável. Revirei os olhos para tamanha insolência com indignação e cruzei os braços.
- É um feto. – Comentário de um estudante de medicina, ela deveria ouvir.
- Um bebê! – Sua insistência dava-me náuseas e ficaríamos naquela discussão o dia inteiro por sermos tão teimosos. Eu não queria um filho! E já dei todas as explicações possíveis para tal.
Hope abortou. Hoje eu me arrependo de não ter tido aquela criança com minha amada, talvez pudéssemos ter salvo algo que certamente morreu naquele dia, e não estou falando do feto.
Dois meses se passaram, a vida correndo normalmente. Eu cantando “Show me how to live” pelos cantos e Hope fitando-me com a insanidade de uma mão que comprometeu a vida de seu filho. Eu já havia superado aquela crise, mas Hoo não parecia nada contente comigo. Ela queria o quê? Uma família? Comigo? Ah! Faça-me um favor.
Voltamos a nos falar direito no terceiro mês, e nesse terceiro mês fizemos as pazes sobre a cama, implorando o perdão um do outro com um quê de falsidade e ironia, apenas para agradar o companheiro e conseguir extrair o máximo de prazer que sabíamos poder proporcionar e receber.
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Aquela rotina matava uma célula minha por vez, que não era substituída por outra mais tarde como de praxe. Eu sentia que estava falecendo mais rápido que as outras pessoas, mesmo que tal suposição não fosse real. Hoo percebera o aumento de meu desânimo, que estava muito maior que o habitual.
- Gregory... Te achei em mais um artigo da Wikipédia. – Ela me entregou o notebook aberto na página do site famoso entre os preguiçosos onde se lia “mortiço”. Sabia o que ela queria e acenei um “sim” com a cabeça, fechando o computador. – O que você tem, meu amor? – Perguntou acariciando meu rosto, pensativa.
- Falta de sexo, querida. – Brinquei beijando seus lábios e depois me levantando do sofá. – Vou fazer uma caminhada, não me espere. – Saí pela porta e fui andar pela rua de nosso prédio. Olhava para o céu nublado, imaginando que talvez ainda houvesse um resquício de penumbra na rutilação. O pio de mim mesmo acanhava os outros, mas eu não ligava, nunca liguei, algo deveras preocupante.
Não vi o carro subindo o meio-fio, apenas senti uma forte pressão nas minhas costas seguida de uma buzina desesperada. Eu não gritei. Morri calado como nasci.
Aqui estou eu agora, observando Hope de uma distância não muito grande. Ela está acompanhada de um provável namorado, o que está me irritando terrivelmente. Hoo visita esse cemitério todo sábado, encara a lápide com meu nome gravado, e se vai logo depois. Não, não fui cremado, o que não faz muita diferença para mim. Já convivia com vermes em vida, em morte era apenas meu corpo que estava rodeado deles.
Encaro Hope pedindo ao namorado que a espere no carro, e agora ela se aproxima fitando meus olhos, ou pelo menos através deles, já que estou em um tom mais diáfano por não passar de um espectro.
- Greg... – Ela diz, surpreendendo-me como sempre. Sinto que ainda existem pendências a serem resolvidas, talvez seja por isso que ainda estou aqui. Talvez seja por isso que ainda posso encarar Hope e dizer a frase mais certa que conheço, esquivando-me de minha mitonamia.
- Eu te amo. – Minha última fala antes de Hoo levantar a mão para me esbofetear. Ela hesita, com a mão ao alto, e não consegue concluir seu ato. Agora a vejo partindo inconformada, com lágrimas nos olhos. Seu gesto disse tudo o que palavras não conseguiriam exprimir. Eu deveria partir... Só não sabia como.