I
Meu Registro Geral me dava dezesseis anos,
dez-e-seis anos de falta de pureza n’alma, virgindade
que se disfarçava
de outra coisa qualquer mais pro lado da safadeza
amolecida
“são os hormônios – deixa a menina!”
Acabei me doando de um jeito que até o espírito
sangrou,
e não foi pouco não, durou a semana inteira de muita
dor. Dor arrastada daquelas
que são mais no ego que no corpo e dão uma sensação de
que
“esse mundo cheio de massacres idiossincráticos” – não
sei, já estava acostumada.
Meu Registro Geral me dava dezesseis anos
dez-e-seis anos de fogo dantesco nos sorrisos
inquietos de menina
intocada. Não intocável, era tudo o que eu queria ser
encostada por outro
nas minhas intimidades mais profundas de ser raso que
eu era
aos dez-e-seis anos. O problema é que fui tocada
errada e
ao invés da intimidade profunda, ele chegou no fundo
do meu abismo...
[O problema de se encostar no abismo de alguém, é
que você não sabe que está encostando... Sabe que algo
melhorou pra você,
mas não sabe que piorou para o outro.
É que o abismo de alguém é área proibida para
terceiros, todos sabem,
mas ninguém cumpre.]
Na semana seguinte, ainda com o espírito dolorido, o
ego machucado,
meu sorriso era triunfal de moça vivida
experiência da ingenuidade não corroborada e a
legitimação daquilo que chamei
pra mim mesma de amor próprio forçado.
O mundo inteiro me era outro e eu continuava sendo a
mesma
porque o meu Registro Geral ainda dizia que eu
vivi ali por dez-e-seis anos... e nele não havia
registro nenhum de qualquer tipo
de experiência nova ou velha,
mesmo sendo tão tabu quanto aquela. Acho que a falta
de espírito na brincadeira
me deixou murchar de novo, como se ao invés do triunfo
só tivesse ocorrido o sangramento forçado.
II
Os olhos fixos do gato me dão arrepios por me
lembrarem
os olhares ferozes de uma nova alma ainda não presente
entre estes que aqui estamos, o socorro advindo de um
ventre noviço – o próprio
novelo do gato. Enrolado, enroscado, entre-vísceras,
entreaberto de peito
pro mundo novo que se faz ao seu redor. Será? Peralta
em breve.
Peralta, certamente; disso sei porque também fui um
dia e nem faz tempo -
foi como ontem, se não tiver realmente sido, talvez eu
ande algo próximo
do perdido... entre a falta de escolha
e a falta de coragem. Coragem essa que tive no momento
errado ao procurar certas
intimidades profundas profanas prolongadas por mais
tempo que aquele próximo mês.
Agarrei-me à possibilidade próxima e joguei-me d’um
precipício. Sem cordas,
só vendo eu e vento. Banhei-me em sangue alheio e
agora...
agora nem sei se dou conta de tamanha loucura criada a
dois. Pura demência
essa que carregam por mim. Nem me lembro dos crimes
que cometi, todos foram sem querer... Mas de que isso
vale? Já está feito.
O gato agora cruza-me com desdém e isso me irrita
profundamente. Eu sou
um deus moderno, apocalíptico como aquela que invadi
nessa minha época
de ser quem sempre fui. Agora não o sou mais, sou
cinco de dez. Anjo
na terra, caído como quem foi jogado... já que pulei
do precipício.
Meia volta, volta e meia, dei de braços abertos àquela
puta. Madalena da
atualidade que é. Somos um conjunto de perfeição.
[Perfeição define-se, nesse caso, como algo que tenho
como certeza, fora
das iniquidades sociais. O fruto estará aí e provará,
nem há vergonha mais por minha
parte, eu estou livre das mentiras criadas por quem
viu nada. Assim,
continuamos sendo mais do que quem não estava lá.
Madalena
e deus.]
Respirar mais forte como estou fazendo nunca me livrou
de ser o gato que me julga. Nem de
usar
todas essas drogas que usei-uso-arei.
III
Mês que passa corrido como
a galinha que fugia de mim naquela
infância distante que tive.
Há um mês é o mesmo que dizer
há cinco-anos-e-três-meses-e-dois-dias que tive a
prova
do fim da juventude. O
retrato destruído de Dorian Gray.
Pedido de socorro que veio tarde demais, pequena
criada de
magros olhos tristes sorrindo de fome,
do meu seio só saiu leite em pó. Pequena criada da
destruição em massa,
buscava a falta de complacência ao me
deixar às traças. Infâmia vestida de piada e meu
pedido de socorro
deixou de significar algo.
“M.E.D.O. é o sentimento, ansiedade é a sensação”
foram as
últimas palavras ao meu pedido de socorro, mas deixo
claro que
haverão outros e que o seu
nirvana não poderá livrá-lo dessa.
[O que ninguém jamais perguntou é se o
nirvana é o mesmo para todo mundo e eu acho
que não porque o seu só me fez chorar e me deu
tudo menos paz.]
Loucura minha achar que uma prova desse tamanho
de que o mundo é cruel seria
minha chave de liberdade. Aliás, loucura não. Inocência...
E o resto da que tive se esvai agora por entre meus
dedos de
membro perdido da vida.
Quase me sinto outra.
IV
Criatura perdida, filha abandonada
de deus. Eu? Eu
fugi no segundo mês,
acometido pelo desesperado sentimento de necessidade
de uma calma maior. Larguei os
detalhes e pisei no mundo aqui fora como quem pisa em nuvem
macia feita de algodão. Já
não sei como anda nada,
nem como fui feito de tantos
dissabores assim... Sinto-me estranho.
Parece até
dor. Dor? Mesmo? Não, não...
Incômodo raso de curta duração.
Viu? Passsou. Mostro-te a
ponta do iceberg, meu caro;
por baixo dessas minhas
camadas de gente há um monstro de gelo, e eu o sou, e ele me é.
Na minha boca sinto o gosto
amargo de vencer sem ganhar porra nenhuma, e aqui
estou eu. Se antes
acreditava que abandonei, creio que o ato se inverteu.
E por aí eu caminho a passos
tortos procurando uma alma perdida qualquer para
lamber minhas desonras e
fraquezas. Vida insípida demais
para alguém que acredita ser
deus ele próprio.
Tenho mantido meus tropeços
longe daquilo que por minutos chamei de meu, aquela
pequena forma de vida por
cima de mim, querendo tornar-se grande.
Matenho-me distante do que
antes fora responsabilidade e minha e agora é só mais uma
memória
diáfana.
[Fazer-se de memórias
imprecisas é perigoso, pois já não se sabe mais da real natureza
de certas passagens. Entre
sonhos e fatos verdadeiros, o que fica na sua mente é
apenas borrões
mal-construídos.
Quem sou eu se não um
personagem cheio de imagens misturadas na cabeça?
Meus medos maiores são as
memórias inventadas.]
Dou minha cara a tapa a
qualquer cara pálida por aí, pois eu
já não funciono ou sirvo
para coisa alguma. Sou só mais um anjo caído, estraçalhado,
perdido nesse mundo infinito
de gente pouco polida.
Desconforto conduzido.
V
Leveza
inquieta
brincalhona
de quem acaba de levantar do
sonho mais longo da vida toda, seguida de desespero
dolorido, cego. Comecei
assim, foi como me disseram.
Hoje, envolta em amarelo
pálido, não me lembro do outro. Só lembro dessa que ficou.
Há dias que chora mais que
eu, e a fome aperta em nós duas. Não é só essa fome aí que todo
mundo pensa e teme,
é aquela outra fome, sabe?
Aquela fome de ser maior
e mais forte, fome de ter
forma de leão pomposo como aqueles homens de filme antigo.
Mas eu estou longe disso;
bem longe, é fato. Sou algo como o contrário
da fonte da juventude.
Retirei a vitalidade dessa que me tem pra si como importante.
Eu sei que sou fruto da
infância interrompida, e que a ingenuidade me criou. Sei também
que fui feita de uma mistura
mal-feita do doce com o amargo;
pitadas de sal não foram
adicionadas à minha receita de moleca perturbada.
A moeda de troca de onde
estou agora é o ódio velado. Eu odeio quem me odeia e isso
fica bem claro sem nem ser
dito, a vida é toda assim. Antigamente
eu via os céus estrelados
como milagres diários, mas a fumaça do cigarro de minha progenitora
enevoou minhas noites. Tenho
pavor de morrer sem rever as estrelas do jeito que via antes. E percebo,
vez ou outra, o tanto que
sou nova para ter esse tipo de medo.
[Existe, sim, um certo
perigo em temer muita coisa muito cedo, pois sabe-se
que nem tudo foi vivido
ainda e quando se teme, dificulta-se o ato de viver o que se é necessário.
Quando se faz como eu,
morrer é algo distante,
mas viver de fato é mais
distante ainda. Como se diz? Antes viver pouco
que gastar o tempo apenas
sobrevivendo. Ou qualquer coisa assim.]
Hoje meu Registro Geral me
dá dezesseis anos.
Dez-e-seis anos de precaução
e medo do novo, do alheio. Sou aquela que,
desinteressada, não se
rebela por nada.
Meu Registro Geral diz que
meus dez-e-seis anos estão em seu fim e eu não dei um passo
fora da linha estipulada por
mim mesma há seis anos. Existem aqueles que estranham, tenho
a cautela de um senhor de setenta
anos
“são os traumas – deixa a
menina!”
Pois encurralo-me na
solitária que eu mesma criei. Diferente do que mamãe fizera há dez-e-seis anos.
Quero te dar um abraço.
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